Paulo Freire (1921-1997), educador que se tornou referência da pedagogia crítica no Brasil e no mundo. |
Ao longo das décadas de 60 e 70, quando o Brasil vivia o auge do regime militar, gradativamente se estabeleceu uma polarização no pensamento educacional brasileiro. De um lado, com a chancela dos governos militares, uma perspectiva de educação pautada pelo tecnicismo e comportamentalismo (behaviorismo), cuja decorrência era uma formação pouco crítica, voltado para o mercado de trabalho, doutrinada pela ideologia autoritária. De outro lado, na vanguarda do pensamento educacional, as perspectivas inspiradas no marxismo, nos “reprodutivistas” franceses (sobretudo Pierre Bourdieu) e aquelas vinculadas às ideias de Paulo Freire.
A análise é da professora Guacira Louro (2002). A autora pontua que “é possível dizer que esse debate teórico – com todos os seus efeitos sobre a prática – representava, na arena da Educação, uma parte importante da resistência ao regime e da luta política” (p. 227). De forte caráter militante, essas proposições críticas foram, pouco a pouco, conquistando um número expressivo de intelectuais e docentes. Com a redemocratização do país, ocorre uma espécie de institucionalização dos discursos educacionais de cunho mais radical. Tem-se, pois, o fortalecimento das chamadas pedagogias críticas.
Nesse contexto, surge, no meio educacional, o conceito de gênero. Embora houvesse interesse por questões sociais e políticas, o foco estava mais na luta de classes e menos nas questões raciais e de gênero, a tal ponto que desviar o foco podia ser visto como uma traição aos ideias de liberdade e igualdade social (LOURO, 2002). Fato é que os ambientes educacionais e os estudos pedagógicos tradicionalmente estiveram dominados pela Psicologia em abordagens voltadas ao indivíduo e seu desenvolvimento – uma das críticas que a própria psicóloga Maria Helena Patto (1990) tece em seu clássico A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia.
Na educação, as pesquisas enfatizavam a sala de aula, buscando explicar e compreender os êxitos e os fracassos de meninos e meninas no sistema educacional, terreno que ainda tem gerado ricos estudos, dentre os deMarília Carvalho (2009)*. “As pedagogias críticas”, destaca Louro (2002, p. 228), “ao colocarem em ação perspectivas tributárias da Sociologia e da Política, mudavam o foco para o social e para o coletivo, e representavam uma ‘virada’ significativa no campo educacional”.
Os estudos de gênero, dadas suas imensas potencialidades de análise, não deveriam focar exclusivamente as meninas e mulheres. |
O que não quer dizer que essa “virada” aconteceu sem obstáculos. A mesma autora destaca que levou alguns anos e muitos trabalhos, discussões e pesquisas para que a noção de gênero, apropriada por feministas no Brasil no início dos anos 80, passasse a ganhar alguma relevância no cenário educacional. Pois o conceito não se resumia a incluir as mulheres às análises e teorias: era essencial que gênero inaugurasse uma discussão profunda a respeito das relações de poder, enfatizasse o caráter construído das mulheres e dos homens e carregasse as marcas das lutas feministas.
Por outro lado, por muito tempo os ditos “estudos de gênero” ora concentraram-se exclusivamente nas meninas e mulheres, ora gênero era tomado de forma superficial, sem que suas potencialidades analíticas fossem de fato aplicadas, como discutimos no artigoGênero enquanto categoria analítica. Dentro desses conflitos nas concepções de gênero, surge a escola pós-estruturalista que muito influenciou nos rumos dos estudos de gênero; este ponto será tratado em outros textos.
“A perspectiva crítica da Educação”, completa Louro (2002, p. 230), “colocara a desigualdade social como questão fundamental a ser compreendida e superada. Ainda que isso significasse, em princípio, a luta contra as assimetrias de classe, seria possível, por essa via, contemplar outras hierarquias sociais, como a de gênero.”
A busca pela compreensão das desigualdades entre meninos e meninas, homens e mulheres, particularmente no âmbito escolar, tem levado a variados escopos de análise: o papel reprodutor da escola, as políticas educacionais (currículos, livros, avaliação), a linguagem sexista dos textos e da prática cotidiana, a ideologia patriarcal e o androcentrismo do conhecimento, a invisibilidade do gênero feminino, a feminização do magistério, entre outros. Ainda que o campo de pesquisas de gênero encontre dificuldades e controvérsias, foi no bojo das pedagogias críticas que os estudos de gênero gradativamente se instalaram no cenário educacional, até se constituírem e se consolidarem enquanto um relevante campo para se entender as desigualdades educacionais.
* O grupo de pesquisa de Marília Carvalho lançou, recentemente, uma revisão das produções em educação formal e gênero. Para acessá-la, clique aqui.
Fonte:Professora Luciene Mochi, via Ensaios de Gênero